Certa vez eu estava em um primeiro cursinho para concursos na cidade do Rio de Janeiro estudando Direito Administrativo. O professor, Roberto Cardoso, era muito bom e didático e ocupava, à época, um cargo de auditor no Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro.
Para esclarecer, os tribunais de contas não são tribunais do Poder Judiciário e têm por função auditar a aplicação de dinheiros de determinado ente. Eles são o braço técnico do Poder Legislativo e emitem relatórios que embasam a decisão deste poder.
Como funciona? Por exemplo, a União – Poder Executivo Federal – envia alguma verba para o município de Votuporanga; o Tribunal de Contas da União tem o poder e a obrigação de fiscalizar, de auditar e de fazer inspeções no município e aferir se o dinheiro federal foi bem aplicado; o mesmo ocorre com a verba do Estado de São Paulo, mas neste caso o tribunal responsável será o Tribunal de Contas do Estado.
Pois bem, o professor Roberto Cardoso era um desses auditores do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro que vai aos órgãos inspecionar como o dinheiro do Estado foi aplicado.
Contava ele que em uma dessas auditorias surpresa, chegou à repartição pública de um município, se apresentou, e pediu um lugar para que pudesse realizar seu trabalho. O atendente disse a ele: “pode ficar naquela mesa ali no corredor mesmo”.
Como o Dr. Roberto era bastante objetivo, sua resposta me marcou e é o que ampara o tema da nossa coluna de hoje: “O Sr. não está recebendo o Roberto Cardoso, por minha pessoa até ficaria nesta mesa no corredor mesmo, mas pela Teoria do Órgão, o Sr. está recebendo o Tribunal de Contas do Estado, então, por favor, providencie uma sala decente para minha equipe trabalhar”.
Não se tratam de lacrações, mas de Direito Administrativo; um agente público – englobando neste conceito os servidores públicos, os cargos comissionados, os cargos em confiança e mesmo os agentes políticos – mais do que “REpresentar” seu órgão, ele “presenta” sua repartição de origem.
Este neologismo foi criado pelo jurista Pontes de Miranda e significa que não é o agente público que faz algo, nem mesmo que ele representa sua repartição – como faz um advogado com seu cliente –, mas que o agente ali é o próprio órgão: Roberto Cardoso não era Roberto Cardoso naquele momento, era o próprio Tribunal de Contas.
Extrapolando o conceito, não é o secretário que faz algo, mas sim a Secretaria do município ou do Estado; não é o prefeito que faz, mas a Prefeitura Municipal; não é o governador, mas o estado; não é o Presidente da República, mas a União e assim por diante. Este princípio está insculpido na Constituição Federal em seu artigo 37: princípio da impessoalidade.
É claro que isso não é apenas doutrina jurídica e letra da lei, também faz sentido lógico, porque um gestor público passa em um concurso, ou é nomeado ou é eleito, para gerir patrimônio e dinheiros que são de toda a população, logo, assumir para si próprio todo o mérito por apenas cumprir sua obrigação é ao menos deselegante.
A “Administração Pública” pode ser entendida como a máquina burocrática à disposição de um governo para que ele possa gerenciar as questões públicas e falando do seu histórico, ele teve três fases: a primeira é a patrimonialista, a segunda é a burocrática e a terceira é a gerencial.
No patrimonialismo havia uma mistura dos patrimônios público e privado, era como se o rei fosse um fazendeiro, dono da terra, e os tributos que pagavam vinham para seu cofre; modernizando, seria como gerir uma empresa pegando dinheiro do caixa para pagar a escola do filho.
Em um segundo momento, o patrimônio já não era mais do rei como pessoa, mas sim da coroa; resume-se por “morte ao rei, viva o rei!”. O seriado “The Crown” mostra bem esta situação: os reis morrem, mas a coroa tem que permanecer, o poder deve continuar estável.
Supostamente, na década de 90, entramos na fase gerencial da Administração Pública e por conta disso se incluiu no mesmo artigo 37 da Constituição Federal o princípio da eficiência.
O que ocorre no Brasil ainda? O patrimonialismo. O noticiário está tomado pelas “joias do presidente Bolsonaro”, que considerou como um presente para si, e não para a República Federativa do Brasil, joias avaliadas em R$ 17 milhões, misturando ainda o público com o privado.
Trazendo à nossa realidade local, o trabalho das autoridades é considerado “presente” à população; os vídeos, que deveriam ser institucionais, carregam o nome da pessoa do gestor; suas publicações não se dão por canais oficiais do município, mas por redes sociais pessoais, como se o próprio prefeito ou o vereador ou o deputado estivessem realizando obras públicas.
Para finalizar, me parece que as joias devem ficar na coroa, que é de todos os votuporanguenses. Entendendo isso, pararemos de socializar perdas e tributos e de pessoalizar lucros e louros, tornando nossa cidade mais democrática.
Bruno Arena: Mestre em Direito Penal e Humanos pela Universidade de Salamanca (Espanha). Especialista em direito penal e direito eleitoral. Presidente do Rotary Club Votuporanga 2022/23. Vice-Presidente da ACILBRAS. Membro do Observatório da Democracia. Proprietário do Cine Votuporanga. Autor e tradutor de livros. Advogado. Instagram @adv.brunoarena.