As primeiras tentativas brasileiras de se buscar uma identidade nacional data do século XIX e as artes tiveram um papel preponderante neste objetivo. Em especial, a literatura de Gonçalves Dias e José de Alencar – quem não lembra de Iracema, virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna? –, buscou no indígena brasileiro, na primeira fase do romantismo, o bom selvagem de Rousseau.
Hoje o conceito de identidade nacional, diante de um mundo globalizado, sofre abalos e sem nos aprofundar muito neste tema, referenciamos nosso mais recente livro: “O que é política criminal transnacional?”, em que discorremos como a soberania estatal perdeu força diante de organismos financeiros internacionais e de grandes conglomerados econômicos, que muitas vezes impõem o modo de viver das pessoas por meio da feitura de leis, inclusive leis criminais.
O diagnóstico social impacta, consequentemente, as leis e o direito. E se temos hoje um Estado pós-moderno, torna-se bastante obsoleto defender algo como patriotismo e soberania de um país sem diálogo com o restante do mundo.
Voltando, não só no romantismo se buscou explicar “de onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?”, alguns autores se tornaram referências, inclusive acadêmicas, nestas questões: Gilberto Freyre com “Casa Grande e Senzala”; Sérgio Buarque de Holanda com “Raízes do Brasil”; “Os donos do poder” de Raymundo Faoro e Darcy Ribeiro com “O povo brasileiro”.
Desses autores surgiram conceitos como “o mito das três raças”; o homem cordial e o patrimonialismo e a corrupção como importados de Portugal.
O entendimento de que o Brasil foi formado pelo melhor de negros, indígenas e brancos europeus e que por isso somos mais passionais e corruptos, caiu nas graças do povo e no senso comum por ser uma explicação fácil e que nos mantém no complexo de vira-lata sem que nos perguntemos se teríamos como mudar a realidade histórica.
Esse cadinho cultural e racial foi naturalizado e está longe de ter sido harmônico. Para uma visão crítica do tema temos o livro “A Elite do Atraso” de Jessé de Souza; para uma visão preconceituosa do tema, temos a fala do ex-vice Presidente Hamilton Mourão quando disse que somos formados pela indolência indígena e pela malandragem do africano.
Daí nos perguntamos? Diversidade ou desigualdade social?
Não acreditando que a convivência entre essas três raças é harmônica, e em combate à desigualdade, característica dos governos mais progressistas, foram feitas ações afirmativas, que são políticas públicas voltadas para a concretização do princípio da igualdade material – não basta dizer que somos todos iguais se as condições de vida e de partida são diferentes, temos que dar um “empurrãozinho” naqueles que estão para trás, esta é a explicação deste princípio.
Foi uma conquista que inclusive na seara eleitoral tivéssemos ações afirmativas: basta ver que hoje os partidos devem lançar ao menos 30% de mulheres candidatas, isso porque, apesar de as mulheres serem maioria em número, não o são em representatividade e por isso precisam de incentivos.
Como experiência pessoal de que as cotas em vagas públicas são necessárias, cursei engenharia na USP (Universidade de São Paulo) e, à época, não havia cotas raciais ou quaisquer outras. Resultado do vestibular: uma turma de 50 homens brancos, sem negros ou mulheres.
Quando cursei direito na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), faculdade mais concorrida do Rio de Janeiro, 45% das vagas eram para cotas: 20% para negros e pardos, 20% para escolas públicas e 5% para PCDs (pessoas com deficiências).
Qual o resultado que se espera da política de cotas? Uma transformação gradual de representatividade nos postos mais relevantes da sociedade. Que outras pessoas se identifiquem e se inspirem com a posição social de um advogado negro, de uma engenheira, de uma juíza PCD, etc., para que aqueles que historicamente não tiveram oportunidades, possam ver que é possível tê-las, além de trazerem uma nova visão de mundo para estes lugares de fala.
A Lei de Cotas foi sancionada em 2012, com prazo para revisão de 10 anos, e foi atualizada no ano passado para mais 10 anos.
Teremos mais uma década para tentarmos reduzir a discrepância que, como citamos, está presente desde as “Raízes do Brasil”.
Bruno Arena: Mestre em Direito Penal e Humanos pela Universidade de Salamanca (Espanha). Especialista em direito penal e direito eleitoral. Presidente do Rotary Club Votuporanga 2022/23. Vice-Presidente da ACILBRAS. Membro do Observatório da Democracia. Proprietário do Cine Votuporanga. Autor e tradutor de livros. Advogado. Instagram @adv.brunoarena.